O médico o conhecia. Vendo os exames, falou firme:
- Antonio, se daqui pra frente você colocar um copo de bebida na boca.
Uma gota de álcool, que seja: é vela e caixão. Teu fígado está prestes a virar
geleia. Parece que não quer ver o Corinthians campeão da Libertadores?
Medicado e recomendado chegou a casa. A mulher ouviu o desabafo e se
preocupou com a criação do casal de filhos.
À noite, Antonio vestiu a camisa alvinegra. Tomou chá e os comprimidos.
Assistiu no rádio o empate de 1
a 1, na estreia, contra o Deportivo Táchira.
Não perdeu, tá bom. Mas maldisse a si mesmo quando se lembrou do litro
de cachaça escondido: Pô, nem um gole?
Já no sexto jogo da fase de grupos, o timão sem perder, Antonio se
medicou com prazer após a goleada de 6 a 0, no jogo de volta, contra o mesmo Táchira.
Voltou a caminhar pelas ruas e titubeou quando um amigo o convidou pra tomar
uma.
O apego a São Jorge. A flâmula no altar. A lamparina acesa. Mataria um
dragão por dia pra ver o Corinthians campeão. Agradeceu e retornou contando a
campanha na mente: 4 vitórias e dois empates.13 gols marcados e dois sofridos.
Melhorava aos poucos. Resistia. A abstinência causava pesadelos. Nas
quartas de finais satisfez-se com o empate zerado em São Januário. O lance do
Diego Souza e o goleiro Cassio, que, com a ponta da luva mudou a trajetória da
bola, quase o levou a uma recaída. Foi salvo pelo gol de Paulinho e a
classificação por 1 a
0.
Dores o incomodavam nas semifinais na baixada santista. E se o Santos aprontasse
alguma molecagem? Temia. Mas vendo a postura do seu time. O empenho. O golaço
do Sheik. A união dos jogadores transbordando além-campo. Sentiu-se confiante e
tomou suco de laranja.
Na partida seguinte, quando ouviu o silêncio fúnebre no estádio, após o
gol de Neymar, Antonio se apegou ao santo. Pediu carona no cavalo branco.
Segurou a lança numa das mãos e na outra a aguardente, caso necessitasse de
suicídio.
Danilo, Danilo, Danilo, balbuciava dormindo no sofá. O martírio estava
chegando ao fim. Enfim, o Coringão decidia a história!
E veio o Boca Junior. Irritante Bombonera não se cala. O resultado
adverso de um a zero. O tremor nas mãos. Sua via crucis. O livre arbítrio. Nem um gole? Árbitro desgraçado, não
vê como eles jogam sujo?
Chegou a levantar-se em direção ao esconderijo. Romarinho entrara no
jogo e recebeu passe de Sheik. Invadiu a área, e com uma cavadinha sobre o
goleiro argentino marcou um golaço, trazendo, de quebra, Antonio em repouso à
poltrona.
Na quarta-feira seguinte, o Pacaembu totalmente tomado. É hoje! É o fim
da peregrinação. Bola rolando e nem o antijogo dos hermanos foi capaz de
desestabilizar a homogênea equipe alvinegra. Sheik, promovido a monstro
sagrado, marcou duas vezes.
Apito final. O inédito troféu inundava-se em lágrimas dos fieis
guerreiros. Rojões iluminam cânticos em glória. A noite virou dia. Antonio tem
a voz embargada pela emoção. De joelhos, mãos estendidas em louvor a São Jorge
seguram um copo cheio de pinga.
Seu pensamento: 8 vitórias e 6 empates. 22 gols marcados e 4 sofridos. Eu estou vendo, doutor! Eu consegui! Meu
Corinthians é campeão da América! E invicto! Chupa essa, berrou pro palmeirense
vizinho.
Com os olhos arregalados em profunda sede, levou o copo à boca. Em
ritual, cheirou a bebida e saudou o santo. Meu Deus: gritou paralisado quando o
dragão expeliu enorme facho de fogo. Atônito, ouviu São Jorge esbravejar:
- Não quer ver o Corinthians campeão do mundo, Antonio?
Sorriu na manhã seguinte. Beijou a mulher e as crianças. E o sonho por
mais um título recomeçou.
Marco Pezão é cronista esportivo, poeta, repórter-fotográfico e agitador cultural.
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